Relato pessoal da única sobrevivente da tragédia que vitimou uma família missionária

Melissa de Paiva

No dia 21 de dezembro de 2003, o pastor adventista brasileiro Ruimar Duarte de Paiva, de 42 anos, sua esposa Margareth Otoni de Paiva, de 37, e o filho Larisson, 11, foram assaltados e mortos em sua própria casa, perto da sede da Missão da Igreja Adventista em Babelthaup, Palau. A única sobrevivente da família foi a filha do casal, Melissa, com 10 anos, na ocasião.


O pastor
Ruimar havia atuado por vários anos no território da União Central-Brasileira. Depois disso, cursou mestrado e doutorado na Universidade Andrews, nos Estados Unidos. De lá, foi servir como missionário em Palau, na Micronésia, onde estava havia 17 meses como pastor da Igreja Adventista de Koror. 

A família foi assassinada por
Justin Hirosi, de 43 anos, que admitiu à polícia ter cometido o crime sob efeito de drogas. Hirosi invadiu a casa dos Paiva para roubar uma TV e um videocassete, matando os três a pauladas. 

O funeral aconteceu no dia 28 de dezembro e uniu duas mães na dor e em oração. Durante a cerimônia fúnebre, a mãe do pastor Ruimar, Ruth de Paiva, surpreendeu as mais de 400 pessoas presentes, ao oferecer perdão ao criminoso e pedir à mãe dele para se unir a ela em oração.Segundo o presidente da República de Palau, Tommy Zemengesau, que assistiu à cerimônia fúnebre, a capacidade da Sra. Paiva de perdoar permitiu à nação inteira começar um “processo de cura”. “A atitude dessa mãe ajudou muitas pessoas a olhar além da tragédia e ver que podemos nos perdoar e viver juntos”, disse o presidente ao jornal Pacific Daily News.

O relato de Melissa 

No momento em que pisamos na ilha, ficamos apaixonados por ela. As pessoas eram muito gentis, amorosas e receptivas. Meus pais, meu irmão 
Larisson e eu fomos recebidos com tradicionais colares de flores, de cheiro suave e adocicado. Nossa nova casa se localizava em um belo cenário, com vista para a floresta tropical e o oceano. Meu pai seria o novo pastor do distrito. Minha mãe se tornaria professora em nossa escola. Tínhamos muitos sonhos para os seis anos que pretendíamos passar em Palau.

Um ano e meio depois, na noite de 21 de dezembro de 2003, havíamos passado momentos agradáveis em família, em atividades recreativas, conversando, cantando hinos cristãos até que fomos dormir.

Minha outra lembrança daquela noite é ter sido acordada às três horas da madrugada por um barulho diferente. Logo vi um estranho dentro de casa. Meus pais e meu irmão estavam estendidos no chão. É quase impossível descrever os pensamentos e sentimentos que tomaram conta de mim naquela noite! Eu não conseguia sentir o chão sob meus pés, mas uma coisa eu senti: braços fortes me amparando.


Tudo aconteceu rapidamente. Passadas 24 horas, esse estranho me deixou em uma estrada desconhecida, pensando que eu estivesse morta. Por um milagre, depois de algumas horas, fui capaz de me levantar e acenar para um carro. No veículo, estava um casal muito simpático, mas não tenho 
ideia de quem eram eles. Continuo acreditando que eram anjos. Ninguém passaria por aquela estrada deserta, especialmente àquela hora da manhã. Eles me levaram para o hospital, onde recebi cuidados de médicos e enfermeiras. Ali, fui vigiada por agentes do FBI (agência policial norte-americana em nível federal).

Recebi muitas visitas de membros da igreja, de amigos e até mesmo do embaixador norte-americano. Mas o que mais me deu força, naquele momento tão confuso, foi quando meus avós entraram em meu quarto. Nós nos abraçamos demoradamente. Isso foi como uma brisa refrescante durante o momento mais duro de minha vida. Aquele foi um Natal muito diferente, mas eu ainda podia sentir a alegria daquele período festivo por meio do amor daqueles que me cercavam.

Superação 

Algumas vezes, olho para o passado e penso: “Passei realmente por isso?” Em muitas ocasiões, penso como se nada tivesse acontecido. Vejo isso como se Deus tivesse coberto meus olhos enquanto me carregava em Seus braços, de modo que não tenho que me lembrar continuamente do trauma pelo qual tive que passar, nem senti-lo com tanta intensidade.

Hoje estou viva para dizer que Deus me salvou de maneira miraculosa, a qual nem mesmo consigo tentar explicar. Não tenho nenhuma explicação humana para o motivo pelo qual não fui assassinada naquele dia. Creio apenas que Deus tinha planos diferentes para minha vida, e Seu propósito para mim na Terra ainda não se completou.

O processo de cura se deu por meio de muitas lágrimas e orações. Certamente, isso não acontece da mesma forma com todas as pessoas e não há como fixar um prazo para que ele ocorra. Costuma-se dizer que o tempo cura as feridas. De fato, isso é verdade.Mas quando colocamos nossa situação nas mãos de Deus, o tempo passa mais rapidamente. É muito importante que não permaneçamos prostrados, mas que nos levantemos.

O fato de estar envolvida com estudos, música e com a igreja me ajudou muito a proteger minha mente de coisas negativas. Por meio do tempo dedicado à devoção pessoal, fui habilitada a desenvolver melhor relacionamento com Deus e lidar mais rapidamente com minha dor.

Perdão - Deus me ajudou a perdoar

Creio que a cura e o perdão caminham de mãos dadas. Quando você perdoa, a cura vem logo em seguida. Aprendi que perdoar não significa necessariamente esquecer. Perdoamos e continuamos nos lembrando do que ocorreu, mas não mantemos mais nada contra a pessoa que nos feriu.

Certamente, não é possível perdoar alguém se você não pedir a Deus que coloque o perdão dentro de você. O perdão não é algo que ajuda apenas a pessoa perdoada. Também é algo que faz bem a quem perdoa. Literalmente, é como se você tirasse um fardo dos ombros.

Como pecadores, não somos inclinados a perdoar, especialmente em situações como essa. Mas Deus é especialista em lidar com nossas emoções e pode mudar os sentimentos ruins, se você permitir que Ele trabalhe em você.

Nas muitas conversas maravilhosas que tive com minha avó, ela me relembrou o grande conflito entre o bem e o mal, dizendo que Satanás usou aquele indivíduo para praticar aqueles atos. Ela me ajudou a relembrar a oração de Cristo, enquanto era pregado na cruz: “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que estão fazendo” (
Lc 23:34, NVI).

O assassino estava sob forte influência de Satanás. Ninguém em seu perfeito juízo poderia cometer um ato tão cruel. Sendo que Cristo ofereceu o perdão enquanto morria na cruz, por que eu não faria o mesmo? E sendo que Deus me perdoa, por que eu não poderia perdoar outro pecador como eu?

O julgamento do assassino não está sob minha responsabilidade. Isso compete a Deus. Ele vai acertar o que precisa ser acertado. Estou aprendendo que o perdão não é humano. É um atributo divino. Por isso, ele só pode vir do alto. Olhando para trás, posso ver que meus pais e meu irmão realizaram em sua morte muito mais do que fizeram em vida, e muitas bênçãos surgiram do que deveria ter sido o fim de tudo. Pessoalmente, aprendi a ser uma pessoa mais forte, e meu relacionamento com Deus floresceu.

Numerosas oportunidades surgiram, as quais não existiriam se as coisas não tivessem acontecido como aconteceram. “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, Pai das misericórdias e Deus de toda consolação, que nos consola em todas as nossas tribulações, para que, com a consolação que recebemos de Deus, possamos consolar os que estão passando por tribulações” (2 Co 1:3, 4, NVI).

Nunca poderemos dizer a alguém: “Sei exatamente o que você está passando.” Não temos essa capacidade. Toda pessoa tem uma experiência diferente e uma história particular. Apesar disso, creio que podemos confortar pessoas que tiveram experiências semelhantes às nossas.

Antes de deixar Palau, eu disse às pessoas que poderia voltar algum dia como missionária. Não sei quais são os planos de Deus para mim, porém sei que Ele diz o seguinte em Sua palavra: “Os Meus pensamentos não são os pensamentos de vocês, nem os seus caminhos são os Meus caminhos”, declara o Senhor. “Assim como os céus são mais altos do que a Terra, também os Meus caminhos são mais altos do que os seus caminhos, e os Meus pensamentos, mais altos do que os seus pensamentos” (Is 55:8, 9, NVI).

Confiança renovada

Não precisamos de respostas para perguntas no estilo “por quê?”, “quando?” ou “como?”. Devemos apenas confiar na direção divina. Ao compartilhar minha história, meu objetivo não é dar apenas uma informação ou obter reconhecimento. Compartilho minha história para tornar conhecido o que Deus fez por mim, de maneira que outros possam ver Seu poder e Sua glória de um ponto de vista diferente. Garanto a você que aquilo que Ele fez por mim também pode fazer por você. Podemos estar certos de que “os nossos sofrimentos atuais não podem ser comparados com a glória que em nós será revelada” (
Rm 8:18, NVI). 

Melissa Otoni De Paiva é estudante de Enfermagem na Universidade Adventista 
Southwestern. Seu relato foi originalmente publicado na Record Magazine, em março de 2012. (Revista Adventista | Julho de 2012)

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